A FUGA DE TODOS NÓS

Para Ilídio Vasques


Não é loucura a nossa diferença, diferente é recusar o mundo porque o mundo não está com a dignidade do homem.
Percorrias aquele bairro de pescadores de ruas estreitas com o sentido de tomares o mundo, era o tempo em que a informação não tinha a velocidade da luz e tudo assentava na amizade concreta.
Ilidio era o jovem filho de pescador que vivia razoávelmente bem naquele bairro pobre de luta e de trabalho.
Era um católico praticante porque os pais certo dia resolveram mandar-lhe para a catequese, mas ele do que gostava era das festas e de andar atráz das raparigas e de tocar viola.
O domingo era um dia de festa, é certo que tinhamos que aturar a missa ao domingo de manhã, e ainda por cima falada em latim.
A conpensação é que depois dessa estupada, podiamos utilizar o salão de festas da igreja e procurar conviver com o objectivo de nos divertir ou de arranjar namorada.
A moral imperava e tomava conta dos nossos desejos, da qual se encarregavam muito bem as velhas beatas e o padre velho que por ali andavam controlando tudo e todos.
Qualquer atracção pelo sexo oposto era de imediato reprimido por aquelas caducas cabeças que só pensavam na maldade do mundo.
Era gente muito feia por dentro.
Sobrava todo o tempo do mundo para uma semana dividida entre a escola, a brincadeira, e os pequenos grandes sonhos por concretizar com paixão.
Ainda tinhamos tempo para fazermos parte daquele jogo de bola que já estava marcado à muito com os tipos do Viso.
Marcavamos fronteiras da nossa acção e o território delíniado por grupos que dominavam o campo da nossa actuação.
Ilídio marcava o campo com a imaginação e a criatividade dum conhecimento intrinseco adquirido pela procura de saber cada vez mais, e de estar na vanguarda do conhecimento da gente do seu bairro.
Preocupava-se com a gente do seu país, e tinha uma sabedoria e um conhecimento que rasgava qualquer desejo de estupidificar a conversa, alongava o desejo para o pricípio da solidariedade e tinha começado a poder pôr em prática o que defendia à muito, e que o fascismo de salazar tinha impedido permanentemente de o fazer.
Finalmente vivia-se em Democracia e o poder de quem trabalha era respeitado.
Chegou finalmente a altura de poder mudar o mundo e de lutar por tudo o que tinha aprendido.
A luta agora ía ser fácil pois eramos nós que tudo decidiamos, podiamos ocupar o salão de festas da igreja e transformá-lo na casa do povo anónimo onde se podia contribuir para que o nosso povo finalmente conhecesse Manuel Alegre , José Afonso, António Gedeão, Bocage, e tantos outros homens importantes que tinhamos ouvido falar.
E que até já tinhamos tentado tocar algumas músicas onde eles também participavam.
O Ilídio era sempre o grande idealista e todas as suas opiniões traziam uma achega de valorização ao nosso trabalho.
A sua postura crítica nunca o impedia de dar o contributo ao trabalho que o grupo tinha decidido, e era sempre o primeiro a incentivar e a marcar o terreno da nossa intervenção.
O bairro ía percebendo que nós existiamos e o Ilidio era já conhecido como o líder daquele grupo que tudo fazia para continuar a mudar o mundo.
Alguns de nós tinhamos uma profunda admiração por ele pela sua capacidade intrinseca de deversificar o seu campo de actuação quer na música quer no teatro ou até como trabalhador manual de qualquer coisa que fosse necessário fazer.
Perdia-se pelas paixões e pelos amores das raparigas algumas que lhe fizeram transformar-se num poeta da música, e sempre que havia um grande amor a sua musa inspiradora fazia-o escrever uma nova composição.
A imaginação tomava conta dos nossos desejos e perdiamo-nos prespectivando como iriamos organizar aquele baile particular.
Sim porque nós tinhamos os nossos bailes particulares.
Não é como agora em que tudo é público e os bailes particulares são peças de museu assim como os gira-discos tipo mala que levavamos para os pic-nics que também já se deixaram de realizar e que serviam para um profundo contacto com a natureza.
Era nessas alturas que ofereciamos papoilas e atiravamos setas de centeio contra as roupas das raparigas que depois tiravamos delicadamente ao sabor do toque dos nossos dedos em contacto com o belo corpo que um dia desejámos possuír.
Ao longo do bairro surgia uma geração que admirava os prazeres da vida e assumia opiniões de romper com uma postura tradicionalista defendida inconscientemente pelos nossos pais que pactuavam com os silêncios que a sociedade impunha.
Alguns desse silêncios tinham a ver com os direitos das mulheres pois no grupo havia tambem mulheres que tinham alguma dificuldade em saírem de casa à noite, e nós homens previligiados pelo machismo da sociedade não nos importavamos com isso e até nos dava algum geito para as noites de borga e divertimento.
Todos nós viviamos de sonhos que o Ilídio também tinha e que assumia como aquela de colocar no passaporte a profissão de músico quando naquele tempo ninguém na nossa cidade assumia essa profissão.
O desejo da aventura tocava-nos a todos, e era no estrangeiro que estava a descoberta de novas coisas.
Quem conseguisse saír a fronteira era admirado pelos outros como conhecedor duma realidade que em nada tinha a ver com a nossa.
Era lá fora que havia as músicas que o Ilídio gostava e nós também.
Para não falar dos filmes, do teatro e das modas que era aquilo que nós maís entendiamos porque a literatura essa era difícil lê-la em língua estrangeira pelo pouco conhecimento que tinhamos do inglês e do francês.
Lá íamos lendo o que podiamos.
Cada vez que um de nós ía ao estrangeiro vinha de lá mais evoluido e conhecedor de outras culturas e de outros mundos.
Todo o limite transgredido de conhecimento rasga um horizonte que transforma a vida.
A música é uma ciência inconcreta que junta a técnica a imaginação e a alma numa profunda simbióse que nos transporta ao êxtase do prazer.
E é nessa perpectiva que a viola do Ílidio assume direitos de desviolar o hímen com prazer, amando a vontade louca todos nós quando cantavamos a canção que dizia assim :

VAMOS CONSTRUIR UMA CIDADE
VAMOS CONSTRUIR UM PAÍS
ONDE HÁ-JA LIBERDADE
ONDE POSSAS SER FELIZ

E fomos cantando isto por todos os lugares da imaginação e com o sentido do amor que tinhamos pela nossa cidade.
E nesse tempo ainda o Ilídio não tinha pintado a viola de Branco, nem tinha namorado aquela rapariga que o marcaria para o resto da vida.
As papoilas aindam não eram conhecidas na fabricação do ópio nem nós ainda tinhamos plantado liamba no jardim do Bonfim.
O Zeca já à muito que tinha feito os Vampiros e andava nesse tempo à procura de músicos para o acompanhar. nos espectáculos em que "o que era preciso era agitar a malta" e quiz convidar o Ilídio.
A fuga ao medo tinha um sentido de analizar as dificuldades com uma certa ponderação revolucionária, e é neste tempo que as Brigadas já não faziam acções armadas e nós achavamos que o poder só podia ser tomado pelas armas.
A Fretilin era o poder que queriamos paraTimor e a sua música tocavamos naquele largo de pescadores, quando quase todos os políticos defendiam a entrega de Timor à Indonésia.
Como estavamos isolados nesse tempo, e eramos minorias nesta globalidade de estupidez fomos sempre assumindo a diferença.
Pendia dos nossos dias um apetite para a tentativa de fazermos as pessoas felizes, e serravamos presunto noites a fio, na procura de controlar a linha correcta que influenciaria o percurso das nossas actuações.
Um dia subimos á serra e trouxemos as nuvens para deitarmos os anjos e na vista sobre o rio ouvimos os cânticos das sereias do sado depois de terem escutado Bocage debroar um poema.
E depois Deus dormiu descansado.
Fomos percorrendo em procissão todo o estuário do rio até onde a lonjura dos olhos alcançava, e mais uma vez fingimos esquecer, que a Arrábida, foi o local escolhido para nascimento do mundo.
À sombra da serra nasceu uma cidade e um convento e Deus um dia passou por aqui e quiz conhecer os loucos que tocavam o céu batendo-lhe à porta com a fúria de não serem esquecidos.
E foram entrando entrando e arrecadados num compartimento onde havia almas de poetas loucos que sobraram dos compêndios da literatura.
Fizemos a história da anti-história com cardumes de sardinha e ainda tivemos que aturar uns carapaus arrependidos por não terem querido ser peixe azul.
O Ilídio sobrava de creatividade nas complexas e bifurcadas maravilhas do mundo.
E as margens já não tinham espaço para navegarem os loucos.
O tempo percorria à procura de afeiçoar os riscos que desenhavam sofrimento e dor nas fronteiras de outros sonhos.
E sobrava lonjura para chegar ao fundo de todos os oceanos que inundariam no fim do mundo aquele pequeno largo de pescadores onde no Café do Zé Augusto pacatamente se recebia uma mão cheia de amizade.
Velhos marinheiros de traineiras abandonadas dormitavam pacatamente por todas as tascas do bairro, jogando a bisca lambida ou ao não te irrites, a troco dos traçadinhos de três, onde a gasosa já não era pirolito de bogalho.
Viúvas donzelas de entretenimento não eram ainda chamadas a frequentar a velhinha Palhavã onde se dançava ao som da música para constituir família.
E o poder popular ainda não tinha acabado.
De belo era tudo o que faziamos e o dinheiro ainda não tinha dado cabo das nossas cabeças.
Consumir!... era o tabaco, o café, e uma cervejinha para animar a alma.
Ninguém se atrevia a acreditar que a sociedade dentro de alguns anos era doida por mini lojas mutiplicadas por muitas.
Que o pão ratado alimentava milhares de crianças.
E que o enjoo de tudo igual abarcaria as nossas vidas.
Dorida solidão das grandes superfícies com labirintos de carros a brincar, que enchem de contentamento os brinquedos que vamos colocando lá dentro, até ao natal das próximas compras.
pendurar o corpo em mais um cartão de crédito.
E prender de molas as prestações das nossas vidas.
Somos a lepra nova que espalhamos calmamente nos corpos com dívidas solteiras de prazeres supérfulos e divorciadas dum casamento com o belo e a natureza.
Ao longe vinha a internet, a televisão por cabo, o mundo da comunicação, e o telemóvel que seria o aí jesus de muitos Portugueses.
O Ilídio sonhava com o seu leitor de cassetes da Farinha Amparo, e já trocava cromos do descontentamento isolando-se da noite.
A Noite tinha a dureza da solidão e os percursos da nossa memória.
É pela noite que entra a nossa imaginação os silêncios do que dissemos a mais durante o dia.
À noite o horizonte é mais perto, a vida é mais íntima, a ternura é partilhada de sonhos, e a lua está por cima das nossas cabeças.
Os poetas não dormem, sentem o êxtase na nudez do prazer e levam consigo o amor até ao infinito dos mundos.
É à noite que as tristezas são mais tristes.
À noite não dormem os fantasmas, os lambisomens e os bandidos espalham a doçura que traduz os medos pela marginalidade dos outros.
À noite o faról assinala a terra.
Era à noite que nos perdiamos pelas ruas da cidade colando cartazes e esborratando pinturas com palavras da nossa revolta.
Espectáculo... grande espectáculo... anunciávam de megafone, encavalitados numa motorizada os animadores amadores do bairro do Ilídio.
Ainda havia a mulher dos queques do Salão que fabricava à noite para vender à tarde.
E nós muitas vezes esperámos os padeiros da noite para devorarmos o pão quente daquela fábrica de pão que havia todas as noites naquele bairro .
Ninguém iria advinhar que o Serra iria ter um Quiosque, o Mendão um café, o Jacinto uma drogaria, o Álvaro seria actor cómico, o Américo maratonista, o António Carlos uma empresa de contabilidade, o Zé Maria encenador de teatro, o Jorge comandante da GNR , o Quim Gouveia cantor pimba, a Catarina funcionária de escola o Betinho vendedor de papelaria, o Vasco empresário de sucesso, o Lucas continua a ser operário e tantos e tantos outros a tratar da vidinha, são empregados, operários poucos, alguns perderam-se ao longo dos casamentos, outros morreram como o Barreto. Com isto já nos esquecemos que o Ilídio existe, e era um dos melhores entre os melhores.
Ainda não havia bispo em Setúbal e todos nos lembramos que na implantação da república as igrejas tinham ardido todas.
E já não havia frades na arrábida e o convento tinha sido expoliado por um senhor chinês.
Os ruazes continuavam a surgir à tona do Sado, e os betinhos da ecologia vendiam- -se à cimenteira que devorava a nossa serra.
Ter terra é sinal de natal ... a saída de fugida às origens.
Como a terra do Ilídio era esta, a monotonia dos cucos cucavam de saturação .
E cada vez mais havia senhores importantes que não passavam importância ao Ilídio e até achavam que ele nunca tinha entrado em nenhum filme do Orsown Wells.
Mas que tinha sido convidado tinha, era ele que me dizia sempre que me encontrava, que iam começar as filmagens brevemente e eu, acreditava na sua imaginação, e que mal tinha convencermo-nos que um dia o Ilídio entraria num dos próximos filmes do amigo Orsown.
Até seria interessante verificar de novo e ao longo destes anos todos a sua capacidade de representação.
O Ilídio representa todos os dias porque não há-de entrar um dia num desses filmes malditos.
O cinema é uma arte, a sétima segundo dizem, e quando o Ilídio cantava e tocava viola o Manuel de Oliveira ainda não era um chato, e o José Saramago ainda não era escritor.
E todos nós já tinhamos partido à procura do mundo que se tinha escondido por de baixo da pata de uma avestruz que escondia a cabeça por de baixo da areia.
E com o mundo escondido todos nós assobiavamos para o lado e a coca-cola já se tinha instalado nas nossas casas.
O Ilídio já só bebia bagaço mascarado de camionista de longo curso naquele café cor de rosa onde a Pantera nunca tinha entrado.
Um dia esqueceu-se de despir o robe e veio para a rua cumprimentar a cidade.
Ele sabia que o Castelo acordava todos os dias no meio do nevoeiro que levara D. Sebastião para Alcacer Quibir.
É longo o percurso que tráz o isolamento e perde-se naquilo a que se concebeu chamar habitação. Naquele velho 1ºandar no Bairro de Troino.
Encerramo-nos na constituição da família e confrontamo-nos com outra geração que traz a rotura duma rotura já experimentada anteriormente.
A cidade crescia desumanamente.
E tocava os laranjais que abraçavam o campo.
E perdiam-se os pregões do " doce de laranja ".
E o Abrantes tinha virado um come em pé e só não era centro comercial não sei porquê?
Mas o Ilídio continuava a preferir o bairro dos pescadores e as tascas das ilusões.
Os mercadores do tinto afogam as mágoas à conversa com o taberneiro de serviço.
Seguravam os entornados pelo peso da enquelinação que faziam, quando aos tombos rumavam ao lugar onde íam aturar as mulheres.
Mulheres lindas... hoje gordas e anafadas que sabiam despilos, quando chegavam entornados a casa, para os meterem na cama, e elas nessa noite dormiriam com os filhos, mesmo que lhes apetecesse uma noite de amor.
Por vezes ainda levavam porrada.
Ah! já me esquecia de dizer que o Ilídio depois do grande amor nunca mais teve uma mulher.
Não estava para as aturar e queria ser um homem livre que pudesse imaginar o mundo à sua maneira.
Porque a um artista as solicitações para imaginação são mais que muitas e quero amar à minha maneira dizia-me ele, e da forma mais natural do mundo.
O amor é tudo, é ser é estar é desejar é alcançar a profundidade de todas as loucuras.
E as mulheres são belas e na castidade o amor é possivel.
Se não o Ilídio não amaria como ama.
Um dia fizemos uma experiência, e pusemos o Ílidio a fazer de curandeiro e a tratar de todos os males naquele grupo restrito, que nas horas vagas se dedicavam ao teatro, e tudo acabou numa sessão de pseudo-espiríta, de pratos com sal e velas incandescentes tentando falar às almas.
Fizemos com tal rigor que alguns de nós acreditaram nas capacidades de cura representativa do curandeiro Ilídio.
Naquele tempo todos falávamos de Marx sem nunca o termos lido.
Mas todos tinhamos lido o Diário do Che e a guerrilha urbana de Marigela.
O basco Fernando tinha enchido todas as paredes da cidade com o simbolo dos anarquistas.
E o Chile estava na moda e os chilenos cantavam nas rádios.
Como era bom pertencer a um grupo que pautava por ser autónomo e experimental
e diferente onde a rua era o palco e as pessoas o amor pela arte.
Que linda era a cidade que não exercia o poder.
E em que sobrava vontade para percorrer os outros bairros agitando a monotonia e o marasmo do quotidiano com todas as formas de agitação vividas com o coração.
Eras um Deus que subvertia as tendências que estavam na moda como solução.
E trazias a força que empurrava os medos para a criação de grupos de intervenção e de expropriação aos ricos para te comparares ao Zé do Telhado.
Cercaste o silêncio com notas de música que ficaram no tempo.
E vieste devagar devagarinho desprendendo a margem num fiar de linho que teceu-te as sombras das pedras e das árvores ao sabor das correntes de opinião que subverteram as modas.
E ainda o Miguel Esteves Cardoso era uma criança de colo e não pensava estupidificar o discurso com parvalheiras atiradas para um jornal de direita.
Nem o Álvaro Cunhal se tinha transformado num critico do seu partido.
Mas o Ilídio continuava a ser o artista do seu bairro e a encontrar a fuga para todos nós.
E todos nós partimos e o Ilídio ficou ali naquele lugar à espera que nós regressassemos.
Mas nós perdê-mo-nos abandonámos os princípios e fomos encontrando justificações para encontrar outros rumos, a sociedade integrou-nos e todos fomos pouco a pouco adaptando-nos a outros vícios a outras formas de pactuar com o mundo injusto que vivemos.
E não tivemos coragem de assumir a nossa incapacidade para resistir como o Ilídio o fez.
E hoje somos profundamente infelizes porque não conseguimos ser felizes como o Ilídio é.
Livre e de frente à vida a loucura de ter criado a sua própria Liberdade.


VICTOR SERRA